quarta-feira, 19 de dezembro de 2007

parte IV - o encontro 'para que vim'

executava aruc o serviço de sua alma, quando esbarrou seus olhos vivos e pacíficos com o olhar esbugalhado de uma senhora preta de idade avançada. esta já o notara e tentava acelerar seus passos para se aproximar do jovem que reluzia como um sol. aruc sentiu de imediato que ela presenciava o feito invisível. as canções da gratidão divina fluíam já sem esforço algum do centro de aruc, e as legiões de microvita realizavam o seu comando assim como as nuvens obedecem os comandos dos ventos. a velha preta já ia atirando-se aos pés do caminhante dos céus quando este interrompeu-lhe o ato.

- não faça isso, minha velha. sou somente um simples irmão, igual a você. onde aprendeste a ver tão bem?

- desde que vim pra cá, vejo de tudo. passei a vida como se fosse uma nega louca, vendo coisa que ninguém mais vê, e o que vejo agora juro que nunca vi igual!! quem és tu, mininu, de onde vens?

- sou aruc! vim porque fui chamado pelo povo daqui. mas ao chegar, descobri que nem mesmo aqueles que me convocaram tinham consciência de que assim o faziam e agora estou descobrindo o meu serviço. sua centelha não me é estranha. vieste para cá junto com os filhos do sol e a família da nação do arco-íris, ou com o comando das estrelas para o plano de ascensão da terra?

- mininu, isso que você fala nunca ouvi, mas meu coração me diz que sim! nunca soube ao certo qual era o meu problema. quando nasci, dizia meu avô, um caboclo valente lá da beira-mar, que era pra minha mãe mais meu pai me banhá na água da cachoeira, para que correndo pro mar, a água restaurasse os danos das pegadas dos homens na terra. o véio do meu avô zelô por mim até eu começar a andar, e depois a falar. minha mãe dizia que eu só dava risada e que quiria vivê só com os bichos. a vida por lá ficou braba e o pai mais mãe vieram pra cidade procurá trabalho. aqui, num tinha cachoeira, rio, mar ou bichos e eu parei de dar risada. num quiria cumê os bicho morto, pois quem é que qué matá seus melhores amigos, e ainda cumê eles? mi diz, misericórdia! quando comecei a falar, ninguém mi intendia, só as plantas e os animais e uns piá bem piqueno. eu sentia uma coisa boa e tirava toda ziquizira que eles tinham, desse mesmo modo que o sinhô mininu tá fazendo com todo mundo, só que força igual a essa eu mesma nunca vi! achei que era um anjo. tu é anjo?

- aruc riu-se - anjo não, sou igual a você, minha irmã pretinha, mas não moro mais aqui. venho só quando me faço necessário. certa feita vim por conta de uma família que não podia ficar doente ao viajar de cima pra baixo com um bebê especial, outras vezes por vim conta de ajudar alguém que importava demais para o bem-estar da vida por aqui. meu serviço sempre foi o de recuperar a saúde de uma pessoa aqui outra ali, de um vilarejo, um rio, uma floresta... mas agora a situação é de emergência! não há mais lugar algum no corpo da querida mãe terra onde a enfermidade não tenha abatido o corpo ou a mente das pessoas, e até mesmo dos bichos e das plantas. cheguei a pouco e acabo que perceber que não estou sozinho. muitos vieram prestar o mesmo serviço, atendendo à grande convocação feita pelo pai das galáxias giratórias, no entanto, ao nascer, a maior parte desses auto-convocados esqueceram para que vieram, ou foram paralisadas pela incompreensão da família e da sociedade.

- mininu aruc, e não é assim qui mi sinto?! você fala de algo que já sei, mas nunca antes meu ouvido escutô. o que tenho que fazê? sigui o sinhô?

- de forma alguma, minha criança, me seguir não. você precisa somente se conectar ao seu centro mais profundo, além do nível dos olhos ou do céu, no mais profundo nível do seu ser, e ascender ali a centelha divina do amor, aquela que fazia você rir quando ficava com os animais, os rios, as montanhas e o mar. quando ascenderes a centelha do amor ouvirás, do nível mais profundo, as instruções sobre o que fazer. é simples e mágico, use o poder do amor verdadeiro e a cada segundo saberá o que fazer, sem que ninguém venha te dizer. quando assim suceder, não precisará lutar por mais nada, pois a grande mãe terra trará dos céus o pão para te alimentar, o maná dos filhos da luz!

aruc envolveu assim a luminosa negra em seus braços, e com o poder da canção amorosa que nascia no silêncio de seu peito, comandou que uma família de microvita pairasse sobre e ao redor da mulher, e a acompanhasse no encantamento do sonho, desvelando as memórias sagradas de sua verdadeira origem e missão. a preta derramou lágrimas de alegria e suas rugas desapareceram diante da imensa satisfação de recordar. despediram-se com um olhar sem palavras e guiada pelo poder do coração saiu sentindo vontade de abraçar todo mundo, e assim procedeu. mesmo aqueles que estranharam o súbito abraço da velha mulher preta, acharam graça e riram sem saber ao certo que haviam sido contagiados com faíscas de amor divino.

parte III - pulsar do amor

tomou assim aruc seu rumo, pois acostumara-se a andar nas correntes do não-tempo - quem assim caminha, sabe sempre para onde ir e está sempre no lugar certo, na hora perfeita, e tudo, absolutamente tudo, se torna eterno e presente.

de seus lábios saia um cantarolar tão sutil que ouvidos agitados não podiam captar, mas que todavia, penetravam as malhas das preocupações humanas, incandescendo moléculas de amor a milhas de distância de seu presentificado semblante. sentiu uma satisfação imensa, e do 'pai de todas as estrelas' veio-lhe uma confirmação certeira de bem proceder. soube, num lugar íntimo dentro de si, que o silêncio seria seu leal parceiro de jornada.

- trabalharei como um radiador de amor e convocarei as microvitas do cosmos para meu auxílio! - formalizou este pensar, num pulsar de clara voz, pois assim se selava um desígnio, como num salmo que termina em 'selah', ou amém.

as microvitas estavam presentes um toda parte, viajavam pelo cosmos no tempo de um instante. deslocavam-se por pura atração. onde um afim se fizesse, alí estavam também elas. muitas eram suas famílias e para cada qual havia uma especialidade. em cada canto do universo, ao serem percebidas, ganhavam nomes variados - anjos, devas, inspiração, musa, milagre, insight, entre outros atributos, graciosos ou não. em seus reinos, microvitas não se descriminavam entre si, cumpriam simplesmente sua natureza mais intrínseca. quando aportam em lugares de realidade relativa e dual, eram percebidas como 'boas ou más'. todavia isso tinha nada haver com sua natureza, era só um modo de perceber parcial. para olhos bons, tudo é bom... enquanto para olhos maus, tudo é mau, ensinou na antiguidade o maior mestre que por aqui transitou.

certa feita, após um grande desentendimento entre as nações da terra que deixara milhares de humanos sem seus corpos de carne, o desagradável odor destes, que sem a presença da vida se decompunham ao relento, atraíra uma família de microvita cuja afinidade com o mau odor era tremenda. tal presença espalhou-se rapidamente pelas quatro direções, alojando-se em corpos vivos, adoecendo-os com uma enfermidade que a ciência da terra não sabe ainda curar.

isto relata somente uma qualidade daquelas inumeráveis famílias de microvita do universo. há, entretanto, microvitas magníficas que acompanham aqueles que entoam os nomes sagrados do 'grande mistério', o criador das galáxias giratórias. elas chegam a fazer cócegas e arrancam risos e choros de alegria daqueles que assim unificam, com cânticos de amor, o centro de suas centelhas individuais ao centro criador de toda a vida.

a urgente chegada de aruc na terra demandou certo tempo de adaptação entre sua natural serenidade e o campo de medo e desconfiança que percebia emanar do pensamento das pessoas. tão logo aquele cântico divino saiu de seus lábios, o amor instaurou-se de imediato em seu centro vital, abrindo seus olhos para ver o invisível. notou então que os pensamentos de medo e desconfiança estavam em todo lugar, e que se tratava de um programa monitorado de aprisionamento coletivo das centelhas divinas da terra. já vira isso antes, não só no planeta azul, em suas idas e vindas, mas também em outras regiões das galáxias onde forças contrárias ao dharma investiam em estratégias ardilosas para desconectar os filhos do grande pai de sua fonte original, e assim embrutecê-los ao ponto da servidão muda, ou da escravidão inconsciente.

o amor compassivo preencheu cada átomo de aruc, e uma força tremenda foi derramada sobre ele, como um óleo de dádivas graciosas que clareou seu entendimento para saber exatamente o que fazer. não se tratava de um plano, pois não era com o futuro que aruc deveria se preocupar; era um estado mágico de presença, que lhe permitia saber sempre o que fazer, como um presente. dirigiu-se então para um local de grande multidão, manteve seus olhos abertos e pacíficos, num caminhar digno de quem anda pelo caminho das estrelas brilhantes do cosmos, e ali, no meio do alvoroço do horário de almoço, cantou em silêncio as canções do amor que brotavam como labaredas do centro de seu peito. tão logo a sinceridade se firmou, legiões de microvita divina formaram um comando de auxílio ao redor de aruc. sem emitir uma única palavra, aruc distribuiu faiscas de amor incandescente para as microvitas. seus olhos miravam através das aparências da multidão, repousando no centro adormecido da morada de deus nas mulheres e nos homens famintos.

onde quer que seus olhos repousassem, microvitas surgiam instantaneamente e plantavam faíscas de amor. um alvoroço silencioso se fez no mundo invisível. ondas de bem-aventurança pulsavam pelo éter, carregadas de amor flamejante. muitos que perdidos em seus pensamentos olhavam para o chão ou para lugar algum, sentiram um calor estranho no coração - era estranho de tão gostoso! outros que se sentiam só, pegaram-se dando boa tarde ou cruzando olhares com as pessoas que nunca são vistas na multidão.

as árvores que habitavam o canteiro central da avenida enfumaçada agitaram-se sem vento e alguns animais aproximaram-se de aruc para presenciar o que há tempos não acontecia naquele lugar. estes pequenos inocentes puseram-se a auxiliar as microvitas, e enchendo-se das faíscas de amor que emanavam da canção silenciosa, andavam e voavam pelas ruas afora como vagalumes discretos sob a luz do sol.